Reforma Tributária Urgente 3ª Parte — Novas Formas de Evasão Ilegal
Antônio Sérgio Valente
Vimos, no artigo anterior, que as formas de evasão legal e travestida de legal evoluíram, e que as de evasão ilegal, de sonegação propriamente dita, adaptaram-se aos novos tempos. Vejamos brevemente qual é o panorama atual da sonegação.
Panorama Atual da Sonegação
Alguns ‘equívocos’ na emissão ou na escrituração de documentos, que implicavam em reduzir tributos, simplesmente foram extintos, ou são muito menos praticados do que outrora. Por exemplo: as omissões de lançamentos nos livros fiscais de débitos destacados em notas emitidas; as famigeradas notas espelhadas ou calçadas, em que quantidades, preços e valores divergiam nas diferentes vias; os créditos em duplicidade; e os créditos sem lastro documental ou com lastro forjado. É que, com o avanço da informática, os cruzamentos de dados são muito mais fáceis e frequentes, de modo que os sonegadores se afastaram dessas modalidades.
Todavia, outros ‘erros’ escriturais, embora perdendo variedade, ainda são praticados largamente, como os estornos de débitos indevidos ou incorretos; os créditos indevidos de material de consumo, do ativo imobilizado, energia ou serviços de telecomunicações; débitos postergados e créditos antecipados; variados tipos de créditos indevidos, ou de subtração de débitos, inclusive em mapas-resumo de ECFs — Emissores de Cupons Fiscais, ou em sua transposição para os livros fiscais.
E mesmo sob as vistas da informática, até na própria emissão e escrituração de documentos ainda ocorrem ‘erros’: de classificação de mercadorias e/ou operações tributadas, ora como se fossem isentas, ora como se merecessem alíquota ou base de cálculo inferiores às corretas, ora como se fossem não tributadas (ZFM, exportação); omissões de lançamentos de débitos relativos a vendas através de cupons fiscais sem indicação de CPF do consumidor, e até de lançamento sem débito de cupom com CPF, neste caso mediante classificação de mercadoria como se fora da Substituição Tributária ou isenta; e vários outros que os olhos mais ou menos míopes do computador não visualizam com muita nitidez.
Excetuando os casos das tradicionais vendas sem nota, ou com meia nota, ou subfaturadas, que jamais deixaram de existir, outras antigas práticas de sonegação tornaram-se, ao que parece, até mais agressivas do que antes, eis que, com o avanço da informática e a extinção dos impressos de notas fiscais, o gesto físico tornou-se virtual, dispensou a cumplicidade da gráfica, assinaturas, até mesmo a máquina de escrever, as vias de papel e os carbonos que podiam denunciar a prática, além de amenizar o temor de quem escrevia à mão a nota fria, com sua própria e criminosa letra. O meio eletrônico eliminou grande parte das provas documentais, sobretudo se levarmos em conta que os registros magnéticos das operações efetivas sequer precisam permanecer na memória do computador do falsário, podem ficar hospedados em nebulosos sites do exterior, e os registros fictos são feitos diretamente na plataforma do Fisco.
É curioso observar que, em plena era digital, o crime eletrônico quase não deixa rastro digital (dos dedos). Parece apenas um trocadilho infame, mas é também um fato. O Fisco até pode rastrear o crime digital, mas a detecção é tão sofisticada, exige conhecimentos, aparelhos e programas tão específicos, além de fortes aparatos judiciais para dar suporte ao monitoramento e robustecer as provas, que o Fisco raramente se utiliza dessas ferramentas, a não ser nos raros casos em que atua a Inteligência Fiscal.
O problema das notas fiscais eletrônicas é extremamente grave, pois elas podem ser utilizadas tanto por sonegadores que vendem através de notas frias (escapando assim de pagar o tributo), como pelos que efetuam créditos lastreados em documentos emitidos por inscrições esquentadas, de empresas fantasmas, autênticos fogareiros virtuais de créditos tributários.
Tais simulacros comerciais — geralmente em nome de laranjas, presta-nomes, fantasmas, testas-de-ferro — existem há décadas, e a informática não conseguiu debelá-los, pelo contrário, até fomentou a sua atividade, eis que tornou mais fácil a prática do delito, e de certo modo os revestiu de alguma legalidade, eis que as emissões são feitas nas plataformas eletrônicas do próprio poder público, que ora peca em vigilância, ora é ludibriado em seu ambiente, e ambos estes fatos pesam contra o Fisco.
Pode inclusive ocorrer de débitos emitidos por supostas empresas (que geram créditos indevidos para os destinatários) serem lançados nos livros dos emitentes inidôneos e declarados normalmente, como se fossem bons e legítimos. Os cruzamentos de bancos de dados batem perfeitamente, o Fisco-Máquina nada detecta. O problema é que esses débitos não são pagos, vão para a Dívida Ativa, e quando a Procuradoria vai cobrá-los só encontra laranjas, bagaços e indigentes, pessoas que foram usadas na fraude.
As repartições fiscais e as varas criminais estão abarrotadas desse tipo de processo. E tanto é verdade que a informática não os mitigou, que estão aí os resultados extremamente positivos das recentes e criativas operações apelidadas de quebra-gelo. E mesmo essas operações fiscais — que em breve talvez tenham de trocar o nome para enxuga-gelo — não impedem a prática, pois apenas detectam o mal depois de praticado, exatamente como outrora, com a agravante de que o suporte operacional do delito é a própria plataforma eletrônica do poder público, o site da própria Secretaria da Fazenda, o que dá aos detentores dos créditos ilegítimos chances muito maiores de êxito em suas defesas, pois se até o órgão público foi ludibriado, se colaborou para revestir de aparente legalidade o documento, que se dirá de um simples comerciante…
Evasão Ilegal na Substituição Tributária
Ainda no que tange à evasão ilegal, à sonegação propriamente dita, recentes modificações na legislação tributária têm ensejado outras modalidades de sonegação, que se não são totalmente novas, antes eram muito menos praticadas, eis que se restringiam a raras mercadorias, mas agora abrangem um universo muito maior. Estamos nos referindo às novas formas de evasão ilegal geradas a partir da ampliação da Substituição Tributária do ICMS.
Que a ST é um farto manancial de evasão legal e travestida legal veremos em close no próximo artigo desta série. Mas ela também inovou, ou pelo menos ampliou, as formas de evasão ilegal. Vejamos algumas situações.
Por um lado, a ST contém, por si só, um atrativo maior para os sonegadores. É que como cada saída de produto sujeito à ST, já a partir da fábrica, está sujeita ao ICMS da operação própria e de todas as etapas futuras de circulação da mercadoria até o consumidor final, a vantagem econômica imediata gerada por algum tipo de tratativa paralela (venda sem nota, meia nota, subfaturamento) é muito maior do que antes, pois implica em sonegar inclusive os fatos geradores futuros. E quando a vantagem é maior, o estímulo à sonegação também é maior.
Além disso, a ST enseja brechas antes inéditas. São os casos das famigeradas planilhas de compensação ou ressarcimento de ICMS-ST, sobretudo as relativas a mercadorias com imposto já retido, mas que saem para outras UFs. Esta situação atualmente tem milhares de ocorrências todos os dias. São atacadistas e varejistas que vendem mercadorias da ST para outros varejistas de outras UFs, nas quais se supõe devam ocorrer as vendas para os consumidores finais. Nesses casos, os alienantes são obrigados a reter novamente o ICMS dos destinatários, segundo as margens da UF de destino, para a qual devem repassar a nova retenção, e, ao mesmo tempo, têm direito a pleitear ressarcimento ou compensação do ICMS-ST original, em sua própria UF.
É um samba do crioulo doido, que irrita e onera tremendamente o empresário, a ponto de estimular a prática de equívocos compensatórios nas tais planilhas de compensação. E isto não é apenas um trocadilho. O problema é que a fiscalização do tipo pente-fino nessas planilhas é praticamente impossível. São tantas possibilidades de equívocos, em tantas colunas, em tantos campos, em tantos documentos a examinar, milhões de papeis, montanhas de rolinhos de fitas-detalhe de cupons, pilhas de mapas-resumo, que a checagem minuciosa e exaustiva é praticamente impossível, mesmo com auxílio da informática. Não é que seja impossível; possível é, mas o volume é tão grande, o Fisco tem de imergir num mar tão vasto de verificações, que corre o sério risco de afogar-se e não fazer mais nenhum outro tipo de trabalho.
Isto para não falar dos casos que ainda batem às portas do Judiciário, quando a margem média ponderado definida pelo Fisco é superior à efetivamente praticada pelo contribuinte. Este se sente como que escorchado e vai ao Judiciário e apresenta planilhas à moda da casa. Já houve casos inclusive de inserção de correção monetária e juros nas contas do ressarcimento, e com respaldo de medida liminar…!
Portanto, é inegável que houve várias inovações no campo das modalidades ilegais de evasão. E uma Reforma Tributária, por mais expressa e singela que seja, deve enfrentar esse problema e tentar corrigi-lo.
O Quixotesco Combate da Nota Fiscal Paulista
A afirmação de que programas de estímulo à cidadania, como o da quixotesca Nota Fiscal Paulista (e outras similares pelo Brasil afora), mitigam o problema da evasão ilegal, é totalmente falaz. Esse tipo de programa, que sequer representa novidade (que o digam A Tuma do Paulistinha e o Talão da Fortuna, dentre outros) não consegue criar o hábito de exigir nota fiscal, pois não forma a consciência livre do cidadão, pelo contrário, a deforma, na medida em que condiciona a atitude cidadã a um estímulo financeiro oferecido pelo próprio Estado. O cidadão assim estimulado não age com a consciência livre, mas sim comprada. E uma vez cessada a propina, cessa a atitude, exatamente como ocorreu com os citados programas anteriores, pois o estímulo no máximo consegue condicionar a consciência, mas não forma a consciência livre e convicta.
Além disso, há razões objetivas que demonstram a total ineficácia do programa.
Em primeiro lugar, o programa paulista, até meados de 2013, decorridos já mais de cinco anos da implantação, alcança apenas 1/3 das notas fiscais emitidas, e vem patinando nesse patamar há uns três anos. Ou seja, os sonegadores dispõem de 2/3 de operações para omissão ou lançamento a menor. Só isto já denota o fracasso do programa. E já custou mais de R$ 8 bilhões aos cofres paulistas…!!!
Em segundo lugar, até no 1/3 emitido com CPF — no qual figuram as emissões por redes de supermercados (que sempre emitiram, antes mesmo do programa) e por lojas de departamentos (que são obrigadas a emitir até para dar garantia do produto ao consumidor) — os contribuintes podem efetuar créditos por estorno de débitos, erros nos mapas-resumo e nas transposições de valores para livros, erros na classificação de mercadorias (como se isentas ou sujeitas à ST estivessem; com alíquotas ou bases de cálculos menores; enfim, um leque imenso, sem alterar o valor da operação ou omiti-la).
Em terceiro lugar, continuam na praça todas as outras hipóteses de ‘equívocos’ nos créditos, inclusive as famigeradas notas frias, bem como as novas modalidades de evasão ilegal, incluindo os erros em planilhas de compensação ou ressarcimento, em transposições destas para livros, etc.
Em quarto lugar, as evasões legal e travestida de legal também estão por aí, na praça, agindo através do lobismo patrocinado por entidades empresariais.
Mas isto já é assunto do próximo artigo desta série. Até…
asgvalente@uol.com.br
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